quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Sem voz

Foi como acordou após um serão de sensações estranhas na garganta. Não fez nada que levasse à fuga do som, ao desaparecimento da sua voz. Estava muda. Só faltava perder a côr para se confudir com uma personagem de um filme a preto e branco, dos mais antigos que ainda não tinham som. E assim estava ela, a gesticular para se fazer entender, a esforçar as cordas vocais para gritar que o gás se tinha apagado e estava a tomar banho de água fria. Mas ninguém ouvia porque, por enquanto, ainda só os cães ouvem sons agudos de uma alta frequência, inaudível aos humanos que caminham a seu lado neste sítio a que chamamos planeta Terra.
Sem voz continuou durante os 4 dias seguintes. Dias esses em que percorreu metade do país (porque até então as suas pernas ainda se mantinham no mesmo sítio) espalhando cartazes que anunciavam o desaparecimento do seu bem mais precioso: a sua voz, e ofereciam uma recompensa (não dizia qual) a quem a encontrasse (com vida).
E uma pessoa sem voz não é nada. Principalmente uma pessoa como ela, que apesar de não saber cantar, sabia falar, argumentar, defender a sua posição e discutir as suas ideias. Sabia explicar o mundo e fazer perguntas às quais lhe respondiam com discursos magníficos que a fascinavam e contribuíam para o aumento da sua cultura, do seu saber, da sua pessoa.
Ela que era uma mulher pouco bonita, para quem os homens não perdiam tempo a olhar (preferindo perder o seu tempo a engolir litros de vinho ao balcão da "Tasca do Alberto"). Ela que não tinha gosto nem percebia de moda, que tinha já 5 filhos e a idade não perdoa. Que não gastava fortunas em cremes nem ia com regularidade ao médico de familía. Ela que trabalhava horas a fio para sustentar 3 dos filhos que ainda viviam com ela (e só com ela). Ela que não tinha tempo para ela, mas tinha a sua voz. Uma voz forte, de mulher corajosa. De mulher inteligente e prespicaz.
No primeiro dia em que acordou sem voz, pensou que seria o seu fim. No quarto dia, pensou que não valia a pena e considerou amarrar uma corda ao pescoço, prendê-la às grades da varanda e dar um salto para o vazio. Mas mais tarde nesse dia o filho mais novo chegou a casa com uma flor que lhe ofereceu com um sorriso. Ao contrário da mãe, o filho não tinha o dom da palavra, nem sequer uma voz muito bonita, e tendo consciência disso, preferia ficar-se pelos sorrisos quando estava feliz, acenos de cabeça quando concordava e pelos murros quando discordava de algo. Ao aceitar a flor, a ideia do salto foi automaticamente eliminada.
No quinto dia acordou com um restício de ruído que lhe saía da garganta. A esperança de encontrar a sua voz e voltar a possuir a sua indentidade voltou a aparecer. E quando, um dia mais tarde, a voz voltou, a mulher gritou para todo o mundo (viseu e arredores) ouvir:

Finalmente existo!

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