terça-feira, 31 de maio de 2011

A rapariga dos postais que odiava a sua memória

Era uma vez uma rapariga que colecionava postais. Postais de todas as cores, tamanhos e sabores. Guardava-os numa caixa e quando tinha saudades deles abria a caixa e dispunha-os a todos pelo chão. Depois andava em cima deles, como se fosse a rainha e eles a sua passadeira vermelha.
Esta é uma solução. Uma solução que ela arranjou quando se deparou com a impossibilidade de incinerar a memória.
O que ela queria era queima-las. Queimar todas as células que a faziam lembrar, queimar todos os tecidos que não a deixavam esquecer.
Ela odiava a sua memória. Não aquela que tinha criado para se entreter e se dar a conhecer, mas sim a outra. A que já nasceu com ela, sem ter pedido permissão nem para aparecer nem para ficar.
Essa memória era tóxica e atormentava-a cada vez mais, por isso pensou em queima-la, em incinera-la.
Num ritual muito (pouco ou quase nada) bonito, com música calminha e pétalas de rosa amarela. Sem plateia, uma coisa discreta. Para ninguém perceber que ela não era tão forte como fazia transparecer.
Foi então que alguém lhe esticou a mão. Uma mão vazia já seria ajuda suficiente, mas aquela mão tinha algo mais. Tinha postais que desenhavam linhas abstratas. Linhas que saíam do papel e entravam dentro dela, fazendo-a pensar só e unicamente no caminho por elas traçado e nas formas que iam sendo criadas.
E desde então pôs para trás das costas as ideias de fogo, fumo, cinza e destruição. Desde então recolhe postais e guarda-os na sua caixa, olhando para eles sempre que a memória se lembra que escapou impunemente ao ritual de incineração.

Sem comentários:

Enviar um comentário

memórias